Em alguma sexta-feira passada...
Pouco trabalho no escritório. Novo corte de cabelo. Treino árduo de Judô. Volto a minha casa e encontro minha mãe no portão. Ela também exibe um novo corte de cabelo. Ela veste uma blusa amarela. Eu estou de camiseta amarela. As coincidências me assustam bastante.
Carrego sua bagagem até a suíte. Por mais que eu viva sozinho nesta casa, eu ainda não tive vontade de mudar para aquele cômodo, mesmo que seja mais espaçoso e possua um banheiro próprio. Pergunto como foi a viagem, como vai o restante da família, como está minha sobrinha e demais eventualidades que sejam interessantes para que me as conte.
Ela exibe um ar de estafa. Sei que não é por causa da viagem. Imagino que ela veio apenas porque quis fugir das confusões domésticas, agora recorrentes desde que minha irmã, meu cunhado e minha sobrinha se mudaram para o sítio. A paz do campo deu lugar a um campo de batalha.
Meus pais vivem em um sítio na região de montanhas do Estado. O clima é agradabilíssimo: temperaturas deliciosamente europeias o ano inteiro. Sempre durmo de cobertor quando os visito durante o verão. Aliás, eu deveria aparecer por lá com mais frequência.
Ela liga a televisão. Pergunto se ela está com fome. Após a resposta afirmativa, abro a geladeira e percebo que não há nada a ser oferecido. Saio para trazer alguns pães e alguma coisa ou outra para acompanhamento. Ela sorri com uma feição de alívio, tranquilidade mesmo.
De volta a casa, preparo-lhe um belo sanduíche com suco de frutas à base de soja. Enquanto comemos, ela diz que precisa conversar comigo sobre um assunto muito sério. De repente, o aspecto de seu rosto, antes calmo, parece um tanto quanto grave. Pergunto-lhe se é algo grave e ela, secamente, responde que não. De novo, sorri da mesma maneira de antes.
Começo a preocupar-me. Deixo minha mãe aos cuidados do Jornal Nacional e vou tomar banho. A água escorre sobre meu corpo enquanto minha mente discorre sobre a dúvida quanto ao teor da conversa vindoura. Sou facilmente assombrado pela possibilidade de falarmos sobre um tema tão espinhoso quanto controverso para mim.
Sou gay, mas minha família não sabe. Caso já saiba, não foi através de mim.
Ela me chama. Pausa para os comerciais. Minha mãe fixa bem o olhar sobre mim como se medisse toda a minha extensão e dá início ao diálogo, sem titubear:
— Liguei para um número desconhecido ontem e sabe quem atendeu? O Pablo. Ele foi tão rude comigo. Falou de coisas que não merecia ter ouvido da boca dele. Foi horrível, meu filho.
Eu estou em choque. Só de ouvir novamente esse nome, eu já percebo que as minhas ilações pareciam estar corretas. Pablo é um conterrâneo que morou, por alguns meses, na mesma república que eu morava, sendo expulso de lá por ninguém gostar dele. O fato de ele ser homossexual assumido era algo até constrangedor a nós, mas inadmissível foi mesmo sua atitude arrogante e seu caráter mentiroso conosco. Para meu infortúnio, esse pulha conseguiu descobrir evidências da minha verdadeira orientação sexual, todavia, não teve oportunidade para utilizar isso contra mim. Não teve até agora...
Eu pergunto a minha mãe por que isso ocorreu. Ela prossegue:
— Sua tia passou esse número de telefone, então eu liguei. Aquele rapaz mal educado nem sabe atender alguém! Fui perguntar de quem era aquele telefone e ele veio com grosseria comigo. Eu queria saber do meu processo no Instituto de Previdência, só isso. Maldita hora que liguei para ele!
Fico mais aliviado por saber que o motivo da conversa era outro, só uma tempestadezinha em copo d'água. Deixo minha mãe prosseguir com o seu desabafo:
— Quando eu falei que só queria saber se ele podia me ajudar com o processo no Instituto, ele baixou um pouco a crista e disse que veria o que ele poderia fazer. Bichinha desgraçada! E foi meu aluno, vê se pode? Mas sempre soube que ele não prestava, não mesmo.
— Calma, mãe, vai ver que ele estava só de mau humor...
— Ah, meu filho! E eu tenho lá culpa se ele está assim ou assado? Eu disse que agradecia pela oferta de ajuda, mas que eu mesma ia lá dar um jeito no meu processo.
Enfim, busco chamar a atenção dela para a volta do telejornal. Depois, conversamos mais um pouco sobre amenidades. O tempo corre macio até chegar a hora de ela tomar os remédios e, em seguida, cair na cama. Eu me perco em meus pensamentos outra vez. Tanto tempo se passou e eu ainda temo que algum segredo do passado meu venha a perturbar a minha vida atual. Pior: esse segredo, de passado, tem absolutamente nada. É presente, é cotidiano, é frequente. Lido com sua vontade de emergir a superfície com dificuldades cada vez maiores. Um fardo pesado, tenso, difícil de ser carregado. Aliás, acredito que o dia, em que revelarei parte de quem eu realmente sou, se aproxima. É, eu sei, inevitável.
Contudo, deixo que minha mãe durma tranquilamente por hoje. Eu espreito seu sono pela fresta da porta, quando um suspiro me escapa dos lábios. Um dia, eu contarei tudo a ela, um dia...
Apenas espero que, nesse dia, eu possa contar com ela também.
17 comentários:
Oi Davi,
Vc deu uma sumida, mas voltou com mais um texto que nos prende o fôlego. Interessante o enredo, a forma como vc deescreve cada cena. Me fez lembrar de quando minha mãe descobriu sobre mim. Te desejo melhor sorte do que tive eu. Pois aos 15 eu tive de sair de casa... mas já é passado superado. Seja forte!
Caso tenha interesse em saber o que se passou comigo leia algum post antigo do inicio do mês de Maio/2009. Ali está minha história, de dor, fuga, de auto-dterminação etc...
Abraço e boa semana
Jay
Deve ser muito difícil, você deve ter medo de magoar, ofender sua mãe e as pessoas que se importam com você. Mas acredito que no dia que você contar a verdade, você vai ter paz. No ínicio pode até ser muito complicado, mas acredito que com o tempo as pessoas que te amam vão te entender e te apoiar. O mais importante é você ser feliz por inteiro. Boa Sorte!!!
Bem, coincidências demais as vezes assusta mesmo...enfim,ah acho que o melhor a fazer mesmo - na sua situação- é contar logo isso tudo e pronto, o que vier é lucro uai(não teve graça:)mais sério mesmo, quanto mais demorar por fica, experiencia própria...
adorei o blog...
beijos e abraços
tá muito bom o texto ( como sempre ) HAHAHAHA.
Fiquei curioso, ansioso, tive medo ahahah... parecia que eu tava vendo um filme, acompanhando.
ah, seus textos são bem sinceros
passam verdade ! parabéns.
abss
Acho que mãe sempre entende melhor esses trem. Vai ser tranquilo quando cê resolver contar.
Por muito tempo tive essas tensões. Sabe, contar para a minha mãe provocou verdadeiras tempestades aqui em casa. Se quiser depois olha as minhas primeiras postagens em janeiro.
Hoje posso dizer que minha mãe não aceita, ela complica as coisas, ainda fica chocada, pergunta o que não quer saber, mas é bem melhor poder falar das coisas sem preocupar que saibam, pois já sabem.
A questão é que as coisas precisam de um tempo, eu contei é de estressado com a minha mãe, a vida e com todos. Na de contar aprendi uma coisa, que também passamos a ser de certa forma responsáveis pelas reações e pelo inferno que os outros, no caso a minha mãe, criam.
Mas algo será positivo no dia que você contar, pode ter certeza.
Eu imagino o sufoco que você passou. Um verdadeiro nó na garganta! O meu caso foi muito parecido com o seu, mas as evidências que vieram a tona não foram tão favoráveis ao meu joguinho de esconde esconde. Não tive tanta sorte como você... E tive de jogar essa ENORME pedra de "n" toneladas no chão. Quando ela caiu e realmente bateu no chão não sobrou pedra sobre pedra... Um verdadeiro desastre que me assombra até hoje! Isso aconteceu a cerca de dois anos... Pretendo contar no meu blog um dia! Preciso me sentir um pouco mais solto...
Fazia tempo que não vinha aqui e quando venho me deparo com esse texto. Maravilhoso!
Espero que sua mãe te apoie na tua decisão *.*
Um abraço.
Nossa... meu coração chegou a disparar!
Sabe q morro d medo de quando chegar "o dia" de contar isso pra minha mãe. Mesmo achando q ela vai apoiar, é uma coisa difícil, né?
Boa sorte aí!
E vá visitar sua mãe mais vezes! hehe
Abço ^^
Gostei mesmo do texto, mesmo apesar do susto inicial de você falar que é previsível.
Bjs de Londres
Dan
Por que será que eu me identifiquei com o texto? :)
ótimo blog!
abraço
Nossa que barra vc está passando!
Comigo graças a Deus foi mais tranquilo...minha mãe soube pela minha boca aos 11 anos e desde sempre me respeita.
vou acompanhar vc!
abraços e força!
ai, sua escrita é excelente,rapaz. ótimo o texto.
bom saber que você espera contar um dia com o apoio da sua mãe. :) aqui em casa,o processo de aceitação(mesmo depois de 3 anos que ela sabe de tudo) nem começou.
Menino cade você??? Saudades...
volta!
volta logo, menino!
(:
Oi Davi,
Gostei muito do seu blog e da forma como escreve, li alguns textos e gostei mesmo.
Texto perfeito, intrigante, e que me trouxe muitas emoções. Parabéns!
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