12 de out. de 2009

7

Em alguma sexta-feira passada...
Pouco trabalho no escritório. Novo corte de cabelo. Treino árduo de Judô. Volto a minha casa e encontro minha mãe no portão. Ela também exibe um novo corte de cabelo. Ela veste uma blusa amarela. Eu estou de camiseta amarela. As coincidências me assustam bastante.
Carrego sua bagagem até a suíte. Por mais que eu viva sozinho nesta casa, eu ainda não tive vontade de mudar para aquele cômodo, mesmo que seja mais espaçoso e possua um banheiro próprio. Pergunto como foi a viagem, como vai o restante da família, como está minha sobrinha e demais eventualidades que sejam interessantes para que me as conte.
Ela exibe um ar de estafa. Sei que não é por causa da viagem. Imagino que ela veio apenas porque quis fugir das confusões domésticas, agora recorrentes desde que minha irmã, meu cunhado e minha sobrinha se mudaram para o sítio. A paz do campo deu lugar a um campo de batalha.
Meus pais vivem em um sítio na região de montanhas do Estado. O clima é agradabilíssimo: temperaturas deliciosamente europeias o ano inteiro. Sempre durmo de cobertor quando os visito durante o verão. Aliás, eu deveria aparecer por lá com mais frequência.
Ela liga a televisão. Pergunto se ela está com fome.  Após a resposta afirmativa, abro a geladeira e percebo que não há nada a ser oferecido. Saio para trazer alguns pães e alguma coisa ou outra para acompanhamento. Ela sorri com uma feição de alívio, tranquilidade mesmo.
De volta a casa, preparo-lhe um belo sanduíche com suco de frutas à base de soja. Enquanto comemos, ela diz que precisa conversar comigo sobre um assunto muito sério. De repente, o aspecto de seu rosto, antes calmo, parece um tanto quanto grave. Pergunto-lhe se é algo grave e ela, secamente, responde que não. De novo, sorri da mesma maneira de antes.
Começo a preocupar-me. Deixo minha mãe aos cuidados do Jornal Nacional e vou tomar banho. A água escorre sobre meu corpo enquanto minha mente discorre sobre a dúvida quanto ao teor da conversa vindoura. Sou facilmente assombrado pela possibilidade de falarmos sobre um tema tão espinhoso quanto controverso para mim.
Sou gay, mas minha família não sabe. Caso já saiba, não foi através de mim.
Ela me chama. Pausa para os comerciais. Minha mãe fixa bem o olhar sobre mim como se medisse toda a minha extensão e dá início ao diálogo, sem titubear:
— Liguei para um número desconhecido ontem e sabe quem atendeu? O Pablo. Ele foi tão rude comigo. Falou de coisas que não merecia ter ouvido da boca dele. Foi horrível, meu filho.
Eu estou em choque. Só de ouvir novamente esse nome, eu já percebo que as minhas ilações pareciam estar corretas. Pablo é um conterrâneo que morou, por alguns meses, na mesma república que eu morava, sendo expulso de lá por ninguém gostar dele. O fato de ele ser homossexual assumido era algo até constrangedor a nós, mas inadmissível foi mesmo sua atitude arrogante e seu caráter mentiroso conosco. Para meu infortúnio, esse pulha conseguiu descobrir evidências da minha verdadeira orientação sexual, todavia, não teve oportunidade para utilizar isso contra mim. Não teve até agora...
Eu pergunto a minha mãe por que isso ocorreu. Ela prossegue:
— Sua tia passou esse número de telefone, então eu liguei. Aquele rapaz mal educado nem sabe atender alguém! Fui perguntar de quem era aquele telefone e ele veio com grosseria comigo. Eu queria saber do meu processo no Instituto de Previdência, só isso. Maldita hora que liguei para ele!
Fico mais aliviado por saber que o motivo da conversa era outro, só uma tempestadezinha em copo d'água. Deixo minha mãe prosseguir com o seu desabafo:
— Quando eu falei que só queria saber se ele podia me ajudar com o processo no Instituto, ele baixou um pouco a crista e disse que veria o que ele poderia fazer. Bichinha desgraçada! E foi meu aluno, vê se pode? Mas sempre soube que ele não prestava, não mesmo.
— Calma, mãe, vai ver que ele estava só de mau humor...
— Ah, meu filho! E eu tenho lá culpa se ele está assim ou assado? Eu disse que agradecia pela oferta de ajuda, mas que eu mesma ia lá dar um jeito no meu processo.
Enfim, busco chamar a atenção dela para a volta do telejornal. Depois, conversamos mais um pouco sobre amenidades. O tempo corre macio até chegar a hora de ela tomar os remédios e, em seguida, cair na cama. Eu  me perco em meus pensamentos outra vez. Tanto tempo se passou e eu ainda temo que algum segredo do passado meu venha a perturbar a minha vida atual. Pior: esse segredo, de passado, tem absolutamente nada. É presente, é cotidiano, é frequente. Lido com sua vontade de emergir a superfície com dificuldades cada vez maiores. Um fardo pesado, tenso, difícil de ser carregado. Aliás, acredito que o dia, em que revelarei parte de quem eu realmente sou, se aproxima. É, eu sei, inevitável.
Contudo, deixo que minha mãe durma tranquilamente por hoje. Eu espreito seu sono pela fresta da porta, quando um suspiro me escapa dos lábios. Um dia, eu contarei tudo a ela, um dia...
Apenas espero que, nesse dia, eu possa contar com ela também.
Minha foto
Reino enquanto houver um Reino.

Espectadores

Aviso
Todas as pessoas mencionadas em meus textos tiveram seus nomes trocados para preservar a identidade alheia e minha integridade jurídica...
Afinal de contas, não quero ser processado!